domingo, 28 de novembro de 2021

A passagem da agulha

Buscar

por entre brechas

nos armários e gavetas

Espreitar

como quem caça traças 

entre páginas antigas

aquela alegria desconhecida

Experimentar

ser outras

tateando o próprio ser

que já não se reconhece

nem no espelho

nem nas cartas que escreve

Ansiar 

por paisagens

e ao mesmo tempo

desejar que sozinhas

as paredes da sala mudem de tom

Querer 

imensamente os abraços e gargalhadas

e desejar também fundir-se

aos ácaros do sofá

Buscar 

uma quase invisível coragem

de um ânimo já desconhecido

de quem percorre labirintos.

 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Morada

Nas minha mãos moram o cheiro

da chave prateada

girando a maçaneta

do medo

apertando a bolsa

da caneta

registrando o dia

o toque

do papel amarelado

o aroma

da formiga que passeou

entre dedos

da planta florida

que me abraçou

do dinheiro

que troquei pelo cheiro

do pão recém saído

do forno onde fez morada

depois de crescer

nas mãos do criador

na minha mão

mora o cheiro

de uma gata

da erva cidreira

do sabonete e da alfazema


eu sei que o mundo mora em mim

pois guardo seu cheiro em minhas mãos.


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Erva doce

Certa vez meu pai me disse que Seu Tiago, meu avô, não tomava café. Essa informação me chamou atenção porque tanto eu, quanto meu pai, gostamos muito de café. Meu pai disse que seu pai, tomava chá de erva doce. Essa informação me chamou atenção porque eu acho lindo, elevado e fino quem toma chá no lugar de café. E pela natural poesia de uma erva que se assume doce. Penso no meu avô, sertanejo das bandas de Itapetim, garçom, pai de seis filhos. Penso no tão pouco que convivemos, lamento por isso. Mas me contento em saber que sempre que eu puser a água para ferver uma erva doce, será como abraçá-lo, a ele, e a meu pai. 

"Meu pai também gostava de chá de canela e lá na casa tinha um pé. Fazíamos chá de canela ou das folhas ou da casca. Também usávamos as folhas para perfumar a casa quando havia festa, como aniversário. Quando se dança numa sala, pisando nas folhas de canela, elas se quebram e exalam o doce perfume da seiva."

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Gosto de sol

 "Eu já estou com o pé nessa estrada

Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol"


Na certeza de que nada será como antes, me agarro ao gosto de sol. Nenhum de nós sairá dessa experiência pandêmica parecidos com o que éramos antes. E não estou aqui romantizando a experiência pautando uma ilusão de evolução coletiva. Falo em não ser como antes, e isso implica em processos diversos.

O que importa é o gosto de sol. Sinto saudades de quem fui, do que vivi, e que sei não viverei igual. Mas no fim das contas sempre foi assim, né? que garantias de permanência temos diante do espanto da vida, que é, substancialmente impermanente? Nada nunca é igual, permanecendo o mesmo. 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

{estandarte}

 O que pode o pássaro

que não pode a palavra?


enigmático pouso

desafiando a gravidade


do que é feita a palavra

que não alcança o pássaro?


nem o estrondo

silencioso

do mecanismo

que o mantém

feito estandarte

em pleno voo

tão imenso

quanto indizível

meneando

na linha fina

do além-mar.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dia 3:Cansar a paisagem

#3 

Quando tudo é impermanência
permanente é a paisagem
e ainda assim transitória
do tempo que se permite demora
e da teia que visita a vista 
permaneça na paisagem
que se permite cansar
mora na janela ilusória
repara que tua imutável tela
reinventa movimento todo dia
pois permanente é a paisagem
e o cansaço dos teus olhos
ávidos de pousar
noutras íris novos tons
e que dentro da própria inconstância
de exata provisória e permanente
só lhe a resta a mudança.



Fotos: Mariana Souto

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Dia 2: Elevar a compreensão

#2 

Sábia é
saber ser 
contrariada
sabe quem
concorda com a discórdia
e se permite duvidar
saber andar 
na finura de uma linha
entre pés que anunciam
novo caminho 
o do meio que nos leva
ao sagrado encontro 
da elevada compreensão
de quem respira do mergulho
há muito submerso
de que cada imaginação
é um novo mundo
que silenciar
é a suspensão 
intervalo entre egoísmos
mergulha no teu íntimo
entre ser e existir
pois na guerra entre o certo e errado
sábio é não saber
e escutar é melhor que ouvir.

Foto: Mariana Souto
Foto: Mariana Souto